3 de Janeiro de 2025
2ª Conferência ARTHE | Cuidar e transmitir: desafios colocados pelos arquivos de artes performativas
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 5, 6 e 7 de fevereiro de 2025
Esta conferência marca o encerramento do Projecto ARTHE – Arquivar o Teatro (PTDC/ART-PER/1651/2021), que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia financiou nos últimos três anos. Poderá ser também um convite a prosseguir o trabalho sobre arquivos de artes performativas e o seu estudo. Foi possível constituir uma equipa, pesquisar e produzir alguns resultados de que fomos dando conta, mas que agora serão apresentados formalmente. Reuniu um conjunto de companhias espalhadas pelo território nacional cujos arquivos ajudaram a pensar gestos de cuidado e de transmissão e abriram caminho a reencontros, reinterpretações e atualizações a partir de perspectivas artísticas, histórico-culturais, sociológicas, patrimoniais e políticas.
“In contemporary societies, the most widespread mode of work is care work.” (Groys 2022: 1).
No processo para compreender a acumulação contínua de extensões dos nossos corpos, cuja sobrevida procuramos assegurar através de artefactos variados (fotografias, vídeos, emails, documentos, livros, objetos artísticos, websites etc.), é inevitável interrogar a institucionalização de certos gestos de cuidar. Museus, bibliotecas, arquivos históricos, monumentos, bases de dados são alvo de cuidados por conterem extensões simbólicas dos nossos corpos materiais e, por conseguinte, das memórias consideradas culturalmente ou historicamente significantes. Cuidamos dos nossos corpos físicos e dos arquivos de artefactos que os representam.
Arquivar documentos que se referem ao teatro e às artes performativas em geral coloca a questão mais lata de saber em que consiste conservar o rasto estético e artístico da prática teatral através de materialidades muito diversas e de gestos de inclusão e exclusão fortuitos envolvendo múltiplos agentes, gestos por vezes obscuros ou motivados pela circunstância artística, económica, sociopolítica da própria criação. Em 1999, o n.º 30 dos Cahiers da Comédie Française recenseava as principais questões que é possível colocar ao Arquivar (d)o Teatro e apresentava o resultado de um inquérito feito a várias instituições em dez cidades do mundo, caracterizando as suas práticas de arquivo. Noëlle Guibert defendia no seu artigo a união entre investigadores e profissionais do teatro, entre teoria e prática, e traçava o retrato da realidade francesa e dos recursos colocados na preservação e no estudo da documentação teatral. Deixava ainda um desafio: mantinha-se a necessidade de convencer os profissionais de teatro a preservarem os vestígios do seu trabalho de criação, estimulando o uso do digital e a divulgação aberta da documentação para reativações futuras.
No entanto, não é só o rasto da criação artística que os arquivos das companhias, dos artistas e técnicos e das instituições culturais conservam. A dimensão administrativa, os modos informais de ligação à comunidade, as redes construídas pela circulação de ideias, causas e iniciativas e até aspetos das vidas das pessoas cruzados com as suas atividades profissionais estão presentes nos materiais guardados, por razões que nem sempre é possível descortinar. Reatando com as palavras de Groys, ao existirem, os arquivos fazem parte do sistema expandido de cuidados dispensados para a sua sobrevida e transmissão. Cuidar engloba ações específicas que podem incluir a constituição de arquivos e a transmissão do que neles se encontra.
Transmitir implica interpretar, relacionar, ordenar, mas também abrir, alargar, escavar e procurar vozes silenciadas e produzir mais documentos e diferentes usos segundo as necessidades do presente. A pertinência de trazer de novo à discussão a questão do cuidar e do transmitir esta peculiar documentação prende-se com o facto de, numa perspetiva prática, permanecerem frágeis as condições de conservação e acesso à documentação agora também em ambiente digital. Mas sobretudo, de ela continuar a colocar perguntas acerca da permanência e do apagamento, do lugar vazio do objecto artístico e do seu preenchimento pela memória, das possibilidades de fazer a história das artes performativas a partir de enunciados aceites para entrarem na história de acontecimentos de tipologias tão variadas (espetáculos, textualidades, corporalidades, espacialidades). Como fazer para compreender esses enunciados e as regras que os constituem no arquivo? Como entender os enunciados já ditos em relação uns aos outros e face às aporias que se adivinham? E de como a tudo isto pode responder o gesto de cuidar e de transmitir dos arquivistas, dos colecionadores, dos artistas e dos investigadores no seu afã de recordar/recuperar e compreender o que terão sido as práticas, o que terá acontecido, o que precisamos de desocultar.
Nesta conferência pretende-se discutir, por um lado, a relação entre o cuidar de arquivos contendo objectos de diferentes materialidades e medialidades, com específicas exigências de meios, pessoas e conhecimentos técnicos (caso de guarda-roupa, registos audiovisuais, fotografias, adereços, materiais cenográficos, documentos manuscritos, dactiloescritos em suporte de papel variado) e os diversos modos da sua utilização e transmissão no âmbito da prática artística; e, por outro lado, o recente apelo ao estudo e à transmissão da informação contida nos arquivos de artes performativas enquanto memória de vivências de fruição do teatro que contribui para repensar a história como espaço epistemológico conturbado implicando múltiplos sujeitos, narrativas, geografias. Através dos arquivos das companhias parceiras do projeto foi possível descortinar o poder e a relevância que detêm para uma história da cultura do período pós-revolução de Abril, assim como tecer argumentos para defender ações de cuidado que tornem esses arquivos sujeitos ativos do fazer da história e do presente da criação artística. Trata-se, pois, de partilhar pensamento/experiência sobre como cuidar de arquivos do teatro, i.e. como preparar formas de salvaguarda e transmissão a longo prazo (e apesar dos desaparecimentos): com que ações, com que formas de relação e organização, com que cúmplices, com que meios, etc.
Convidámos a intervir três dos consultores que nos falarão a partir dos seus particulares saberes e experiências: Hélia Marçal, investigadora em ética e património e práticas de cuidado em museologia (University College London, IHC da Universidade NOVA de Lisboa); Luís Trindade, investigador em história cultural (IHC, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa / IN2PAST); e Luís Castro, performer, (codirector da KARNART-C.P.O.A.A).
Duas mesas-redondas irão trazer a perspetiva dos cuidadores institucionais de arquivos e bibliotecas – Silvestre Lacerda (diretor-geral do Arquivo Nacional da Torre do Tombo), Pedro Estácio (chefe da Divisão da Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), Cristina Faria (diretora de Documentação e Património do Teatro Nacional D. Maria II), Sofia Patrão (bibliotecária do Museu Nacional do Teatro e da Dança) – e a perspetiva da equipa do ARTHE, que desde o início do projeto incluiu representantes das companhias no processo de trabalho e fará um balanço dos resultados da pesquisa.
Haverá duas visitas: uma à exposição que o Arquivo Nacional da Torre do Tombo está a preparar para esta ocasião, e que ficará patente até ao final de Março, e ao espaço da KARNART e ao seu arquivo e museu.
A conferência Cuidar e transmitir: desafios dos arquivos das artes do espetáculo acolherá ainda um conjunto de comunicações de reflexão ou de estudo de casos sobre o tema proposto, sendo alguns dos tópicos possíveis os seguintes:
– As políticas culturais e a salvaguarda dos arquivos das artes do espetáculo;
– Experiências de preservação de arquivos em companhias de teatro;
– Arquivos ameaçados, arquivos salvos;
– A historiografia dos arquivos das artes do espetáculo;
– Atos de transmissão e pós-memória;
– Os media digitais ao serviço das artes do espetáculo;
– A dimensão afetiva dos arquivos de companhias e de artistas:
– Usos dos arquivos e formas de transmissão;
– Arquivistas e artistas: perspetivas cruzadas
Referências
Groys, B. (2022). Philosophy of Care. Londres et New York : Verso.
Guibert, N. (1999). « Une Bibliothèque pour les Arts du Spectacle» Les Cahiers. Revue Trimestrielle de Théâtre, nº 30 : 31-41.
Goldchluk, G. (dir.). (2024), El archivo como política de lectura / L’archive en tant que politique de lecture, Editions des archives contemporaines, France, ISBN : 9782813004451, 413p., doi : https://doi.org/10.17184/eac.9782813004451
Roms, H. (2020). How Performance Art Makes History: Artists’ Auto-histories of Happenings and Fluxus in the 1960s, The Methuen Drama Companion to Performance Art, Ferdman B., Stokic J. (ed.). London: Methuen Drama doi: 10.5040/9781350057609.0011
Millar, L. (2017). Archives: Principles and Practices. London : Facet Publishing.
Thylstrup, N. B., Agostinho, D., Ring, A., D’Ignazio, C. Veel, K. (ed.). (2021). Uncertain Archives. Critical Keywords for Big Data. Mit Press
Hölling, H. B., Feldman, J. P. and Magnin, E. (ed.) (2023). Performance The Ethics and the Politics of Conservation and Care, Volume I. London & New York: Routledge
Madeira, C., Matos Oliveira, F. e Marçal, H. (ed.) (2020). Práticas de Arquivo em Artes Performativas. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra
Informações
Local: Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Datas: 5, 6 e 7 de fevereiro de 2025
Organização: Projecto ARTHE – Arquivar o Teatro, Centro de Estudos de Teatro, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Comissão científica: Maria João Brilhante, Ana Bigotte Vieira, Paula Caspão, Vera Borges, Pedro Estácio, Sofia Patrão, Daniel Tércio, Hélia Marçal, Heike Roms, Luís Castro, Silvestre Lacerda, Pedro Estácio.
Critérios para submissão: O resumo da comunicação deverá conter entre 300 e 500 palavras, em português, inglês, francês ou espanhol e quatro palavras-chave. Virão acompanhados de um breve CV (200 palavras). Deverão ser enviados com o assunto: Conferência ARTHE 2025 para o endereço arthe@letras.ulisboa.pt